Vera Guedes de Sousa:
Até hoje evitei responder à polémica do cartaz “Por favor não matem os velhinhos”, que segurei na manifestação a favor da vida. Neste momento, no entanto, sinto a necessidade de defender “este cartaz” - mesmo com o risco de me sujeitar a mais criticas e assédio. Prefiro ser criticada por aquilo que realmente sou e acredito e não pela imagem totalmente distorcida e ridícula que alguns procuraram criar.
A multiplicidade de respostas que visaram ridicularizar este cartaz e quem o segurava, de uma forma por vezes violenta, deixou-me desolada e surpreendida – porque ao defender os meus ideais sempre tive respeito por quem tem opiniões contrárias. Apercebi-me da superficialidade e agressividade gratuita com que debatemos temas sociais nos órgãos de comunicação social e redes sociais, talvez porque pela primeira vez senti tudo isto na pele.
Como é evidente ninguém associa a eutanásia à “abertura da época de caça aos velhinhos”, como ouvi há dias na televisão. Não sendo eu a autora do cartaz, sei que o mesmo pretendeu sensibilizar as pessoas para a vulnerabilidade dos idosos caso a eutanásia venha a ser legalizada e promovida pelo Estado. A sua condição mais frágil e débil, possíveis fracos recursos económicos e falta de acesso a cuidados paliativos torna-las-á mais suscetíveis para pedir a morte caso esta opção seja legitimada pela Sociedade e facultada pelos serviços do Estado. Este é o verdadeiro significado do cartaz.
De facto existe muita gente que não está informada sobre o tema da eutanásia. No entanto, posso afirmar com convicção que não sou uma delas. Sou estudante de Medicina e escolhi este ramo porque soube desde cedo que queria dedicar a minha vida a cuidar dos outros e a lutar pelo valor que mais importa neste mundo: a Vida. Por isso é natural que me sinta triste ao deparar-me com a possibilidade de que a profissão que sonho vir a exercer possa ter no futuro uma função acrescida: o poder legal para matar.
Tal papel iria totalmente contra a natureza de um médico e contra o seu Código Deontológico. A ideia de que é a obrigação de um médico antecipar a morte de um paciente a seu pedido para lhe retirar o sofrimento é completamente errada. Isto não é medicina. O dever do médico é o da “prestação dos melhores cuidados ao seu alcance, agindo sempre com correção e delicadeza, no intuito de promover ou restituir a saúde, conservar a vida e a sua qualidade, suavizar os sofrimentos, nomeadamente nos doentes sem esperança de cura ou em fase terminal, no pleno respeito pela dignidade do ser humano” (Título I, Capítulo II, Artigo 5º). É também seu dever “Nas situações de doenças avançadas e progressivas cujos tratamentos não permitem reverter a sua evolução natural, o médico deve dirigir a sua ação para o bem-estar dos doentes, evitando a futilidade terapêutica, designadamente a utilização de meios de diagnóstico e terapêutica que podem, por si próprios, induzir mais sofrimento, sem que daí advenha qualquer benefício” (Título II, Capítulo II, Artigo 66º). A isto chama-se distanásia, uma prática ética/médica condenável. Ou seja, um não à eutanásia não deve, de modo algum, ser confundido com um sim à distanásia. O doente é detentor do direito de cessar ou recusar quaisquer tratamentos, não de pedir antecipação propositada da sua morte – “O uso de meios extraordinários de manutenção da vida não deve ser iniciado ou continuado contra a vontade do doente” (Título II, Capítulo II, artigo 67º) e “Ao médico é vedada a ajuda ao suicídio, a eutanásia e a distanásia” (Título II, Capítulo II, artigo 65º).
(Os artigos foram retirados do Regulamento de Deontologia Médica, disponível no Diário da República Online)
Atualmente passamos por uma época de eufemismos e branqueamento de palavras. Querem fazer passar eutanásia por sinónimo de “morte medicamente assistida”, como se esta não fosse já uma prática atual e dever de todos os médicos – o de acompanhar o doente até ao fim da sua vida, prestando-lhe cuidado e atendimento. Na eutanásia, por sua vez, o médico torna-se o veículo da precipitação da morte do doente.
E com este eufemismo vem outra falácia: a do respeito pela liberdade individual e autonomia dos doentes, tão bem explicada e desconstruída pelo professor Diogo Costa Gonçalves (https://observador.pt/opin…/eutanasia-e-o-mito-da-autonomia/).
Qualquer vida e qualquer morte são sempre dignas. É muito perigoso afirmar que existem vidas menos dignas do que outras, seja por motivo de doença ou lesão. Uma pessoa doente ou lesionada não tem, de modo algum, menos dignidade do que uma pessoa saudável, pelo que a necessidade de antecipar a morte para que esta seja mais digna não pode ser um argumento.
Muitas pessoas assumem que ser contra a ‘despenalização da eutanásia’ é ser indiferente ao sofrimento. Muito pelo contrário. Uma pessoa que está a sofrer merece receber todos os cuidados de saúde a que tem direito, para que sofra o mínimo possível. Infelizmente isto não acontece em Portugal. Neste momento, mais de 70 mil pessoas não têm acesso a Cuidados Paliativos. Esta sim devia ser a luta dos portugueses e dos seus representantes políticos. Como explicar a pressa na criação de uma lei que permitirá que pessoas sejam assistidas para morrer, quando não damos às mesmas os cuidados a que elas têm direito?
Basta olhar para os exemplos dos países em que a eutanásia é legal para entender que a chamada “rampa deslizante” é inevitável. Estes exemplos mostram que a legalização da eutanásia abre uma “caixa de pandora”, com consequências muito perigosas. Note-se a extensão da eutanásia para crianças e doentes mentais na Holanda e na Bélgica; bem como os inúmeros casos de eutanásia não consentida. Esta legislação pode partir de uma intenção humanista, mas todos os que tentaram demonstram que não é possível cumprir o projeto inicial e que não é possível limitar esta lei para o conjunto de parâmetros inicialmente pretendido. Afinal de contas, o sofrimento não é algo mensurável, logo “sofrimento insuportável” não é igual para cada pessoa, pelo que não é possível legislar sobre o assunto. Ao legitimar a eutanásia estaremos a criar novas razões e novas pressões para que os doentes sem esperança de cura peçam para morrer. A motivação primária dessas pessoas não será a dor física - esta pode ser aliviada com o acesso a Cuidados Paliativos - mas antes o facto de se sentirem um fardo para as suas famílias ou o medo de virem a perder a sua autonomia ou a sua dignidade. Por reconhecer, falsamente, que a vida em certas situações é indigna, a legalização da morte provocada pressionará injustamente os doentes terminais a decidir pôr fim à vida. Nos países em que é legal, a eutanásia tem vindo a tornar-se progressivamente uma ‘solução barata’, ‘normal’ e até ‘útil’ do ponto de vista económico.
A Vida é inviolável e a Lei deve proteger e defender este princípio de forma absoluta. Legalizar a opção pela morte em determinadas situações significaria a aceitação pela Sociedade de que determinado critérios podem desvalorizar a Vida. Em defesa de todos os que estão vulneráveis, em sofrimento, dos que perderam a esperança ou se sentem um fardo para os seus, a Sociedade deve afirmar a dignidade e a inviolabilidade da vida em todas as circunstâncias.