Com 97 anos morreu o Autor da Marcha de Montalegre
De Barroso da Fonte
Quem era vivo e tem a memória fresca lembra-se da música dos anos sessenta, durante a guerra do ultramar «Angola é nossa». De resto havia duas canções com o mesmo título. Mas com letra e música diferentes. Ambas muito conhecidas, ritmadas, muito persuasivas e muito empolgantes. Ninguém ficava indiferente à música e à letra. Sobretudo nas rubricas radiofónicas de discos pedidos, tanto uma versão como a outra, eram das mais requisitadas pelos ouvintes, quer em Angola, quer no Continente. Logo após a autonomia das Províncias Ultramarinas, uma e outra versões foram silenciadas, deixando de ouvir-se. Uma dessas versões tinha música e letra do Padre Ângelo do Carmo Minhava, natural de Ermelo, concelho de Mondim de Basto. Este sacerdote Transmontano nasceu em 15 de Janeiro de 1919 e faleceu dia 2 de Dezembro em curso. Foram 97 anos de vida cheia, de entrega aos outros que foram todos aqueles que com ele se relacionaram, que com ele aprenderam nas aulas e cumpriram as normas religiosas.
Ordenou-se no Seminário de Vila Real, em 1942. Desde cedo se dedicou à arte musical e poética, lecionando, formando tunas e orfeões e regendo esses agrupamentos, quer no antigo Liceu Camilo Castelo Branco, na Escola de S. Pedro, no Instituto Politécnico de Vila Real (mais tarde UTAD), quer no próprio seminário a que pertenceu como aluno e mais tarde, o resto da vida, como professor. Foram seus alunos e vários e conhecidos maestros, como José Luís Borges Coelho, Altino Moreira Cardoso, Prof. Magalhães. Padre Branco de Matos.
Foi professor de latim, Francês, Literatura e, obviamente, música. Em 1947 escreveu e publicou o poema herói-cómico – Lírico Cabrilíada. Editou vários outros livros sobre literatura e boas maneiras de falar e de conviver em sociedade. Foi autor de muitas marchas, entre as quais de: Vila Real, Montalegre, Régua, Boticas, Ribeira de Pena, Pensalves, Pontido, Lagoaça. Hino do Regimento Militar de Chaves e de vários regimentos que prestaram serviço no Ultramar. Com letras do autor desta nota, musicou os Hinos das Casas Regionais de Trás-os-Montes de: Guimarães e do Porto; o soneto «Para meu Pai» e o poemeto «Da terra nasce o amor».
O que fica para além da morte do Padre Minhava, depois de 97 anos de vida, são a bondade, o saber o exemplo cívico. Resta seguir as linhas mestras que o Padre Minhava nos incutiu.
Falo por mim que fui seu aluno durante dez anos. Foi meu maestro, meu complemento em coisas que têm a minha assinatura, mas precisei da dele; e, em cultura, que muito me ensinou e que, por culpa minha, tão pouco aprendi.
Perdemos todos os Transmontanos, muitos portugueses e a sociedade, em geral, um dos mais lúcidos, mais sólidos e mais coerentes cidadãos do nosso tempo. Quase um século de uma convivência proveitosa, porque viveu para os outros e não me parece que tenha vivido para si. Permita-me o leitor que fale na primeira pessoa. Há notícias que se escrevem e que podem gerar incomodidades. Mas quando se fala de alguém, como foi o Padre Ângelo do Carmo Minhava, fica-se, com a quase certeza, de que falamos de um ser humano, verdadeiramente exemplar.
Conheci-o em 1952, como meu professor de música. Nunca fui bom aluno em nada, nem sequer em música. Em dez anos solfejei, cantei e até regi algumas vezes, mas só nas aulas e entre colegas. Fui barítono por escolha sua. Nessa condição cheguei a ir, integrado no seu orfeão, atuar aos estúdios da Rádio Alto Douro. Penso que era um brinquedo para o (depois, meu amigo) Carlos Ruela. Era um privilégio nesses tempos, em que não havia estúdios, nem televisões. Mas, de facto, apenas fiz letras que (os hoje maestros) José Luís Borges Coelho e o Altino Moreira Cardoso, musicaram.
Por não conseguir musicar, sinal de que aprendi pouco, em dez anos, tive a rara satisfação de ver quatro poemas meus musicados pelo Mestre de nós os três. Pela vida fora foi lendo os meus escritos em jornais e em livros, em prosa e em verso,que produzi em mais de meio século. Sempre me escrevia a agradecer e a felicitar; e, algumas vezes, a puxar as orelhas, por excessos de linguagem ou discordâncias formais. Recordo que numa entrevista a Gil Silva e a Paulo Mourão ao programa «Perfis -Transmontano sem preconceito», questionado sobre - «o que tem a dizer sobre Pires Cabral, António Cabral e Barroso da Fonte, respondeu assim: - «embora discorde, por vezes, de certas efabulações do escritor Pires Cabral, reconheço nele um escritor de muito mérito... O dr. António Cabral é, desde jovem, vocacionado para as letras. Barroso da Fonte, idem, por vezes bastante conflituoso, mas frontal e grande patriota». Nunca me reconheci tão bem caraterizado. De Ângelo Minhava fica, para além da morte, aquilo que todos nós deveríamos deixar: erudição, obras e exemplos de toda a natureza. A imprensa regional já noticiou o seu desaparecimento. Na imprensa diária, a começar pela RTP que se proclama de serviço público, ainda nada vi, nem ouvi, de entretida que anda com o futebol, com guerras de alecrim e de manjerona e com vedetas vazias de tudo, a não ser a espuma que lhes tapa as mazelas. Espero que o poder político distrital, desde Mondim de Basto a Montalegre, desde Vila Real à Régua, de Chaves a Lagoaça, saiba perpetuar o nome e a obra deste Transmontano do tamanho das Fisgas de Ermelo e do simbolismo intelectual do Douro. Há homens do tamanho do mundo como o Mons. Ângelo Minhava que só aparecem e desaparecem de século a século.