Do livro "NEM SEMPRE OS PINHEIROS SÃO VERDES", transcrevo um conto de Natal da autoria do poeta e prosador João de Deus Rodrigues. Uma rica prenda de Natal para ler nesta quadra:
(O Natal no Nordeste Transmontano e os rebuçados do céu…)
Na maioria das aldeias do Nordeste Transmontano, o mês de Dezembro era considerado um dos nove meses, ditos de Inverno. As noites eram monótonas, longas e frias, e os dias, rotineiros e gelados, com vento e com chuva.
As casas de habitação não tinham electricidade, nem água canalizada, nem qualquer tipo de aquecimento. Restava apenas a fogueira na cozinha, ao redor da qual as famílias passavam os serões à luz da candeia, a ouvirem o silvar do vento e a chuva e a neve a caírem nos telhados, enquanto os pais contavam “estórias” e lendas aos filhos, ou olhavam para os gatos, a ronronar a seus pés, quando não estavam nos palheiros a murar ratos, e as mães fiavam a lã e o linho ou faziam os meiotes e remendavam a roupa da família, habitualmente numerosa.
Outras vezes, rezavam todos junto à lareira por alma dos seus mortos, ou cantavam de alegria quando nascia mais uma criança que vinha aumentar o agregado familiar e a ser mais um lavrador ou pastor, ou uma esposa e dona de casa, dedicada.
Nas aldeias não havia rádios nem televisões, e quanto a livros só havia o Missal na igreja, e poucos mais. Mas também não eram necessários, a maioria das pessoas não conhecia uma letra do seu tamanho, como diziam com mágoa: “ eu nunca entrei numa escola e não conheço uma letra do meu tamanho!”.
Havia anos em que as pessoas passavam dias seguidos em casa, porque a bufarra (nevoeiro), o gelo e a chuva a isso as obrigava. Nessa altura, os rebanhos ficavam nas curriças, onde os pastores os iam alimentar com palha, e os lavradores ficavam em casa preocupados, a deitarem contas à vida: “com o tempo assim, vai ser outro ano de fome!”.
Também os nevões caíam com regularidade, e depois, a seguir a eles, o gelo e o cacimbo deixavam o carambelo pendente dos beirais dos telhados, onde os garotos o quebravam e comiam, como sendo o melhor “Gelado” do mundo, coisa que eles não conheciam…
Nas escolas não havia qualquer espécie de aquecimento e os alunos, muitos descalços e mal agasalhados, choravam com o frio e o professor mandava-os para casa para se aquecerem à lareira, se havia lenha para a acender.
À noite, das serras e dos montes desciam lobos esfomeados aos povoados, e nem cães nem gatos que vagueassem pelas ruas lhes escapavam. A fome é negra, comer era uma necessidade vital.
Contudo, no meio deste abandono e solidão o mês de Dezembro era o mês do ano mais esperado pelas populações das aldeias. Isto porque, para além de ser o mês do Natal e da matança do porco, também era quando chegavam os familiares ausentes, que vinham passar o Natal com a família e matar saudades da santa terrinha. Esses sentimentos que, desde a diáspora, sempre prenderam os transmontanos às origens...
Nesse ano, a Maria da Céu “andava de esperanças” (grávida) do terceiro filho. Filha de pais católicos e sobrinha de padre, em casa dos pais o Natal era passado em família e comemorado intensamente, sem, contudo, haver sapatinhos na chaminé. A lenda do pai natal, essa criação do “tio Sam”, ainda não era conhecida por aquelas bandas…
Porém, ao serão não faltavam cânticos ao Deus Menino, cantados com fervor e fé junto da lareira onde o fogo crepitava, e à mesa se sentavam pais, filhos e criados, sem distinção. Sendo que o rapaz mais novo, sentado à mesa, era o que dava graças a Deus (rezava) pela refeição servida, no início e no fim da ceia de Natal.
A Maria do Céu vinha dando à luz de três em três anos. A causa provável disso acontecer talvez fosse o facto de amamentar os filhos nos primeiros dois anos.
O primeiro filho nasceu no mês de Agosto e o segundo no mês de Julho. E este, o terceiro, esperava-o, segundo as suas contas, para finais de Dezembro. Por isso, pedia a Deus que nascesse na noite de Natal!
Que felicidade seria a minha, se depois da ceia fosse à Missa do Galo e quando chegasse a casa sentisse as águas e viesse a Dona Eugénia para o ajudar a nascer, são e escorreito, e depois de lhe dar banho mo pôr no colo para eu lhe dar de mamar…
Fazei isto, Senhor, se eu o merecer, rogava ela a Deus! E prometia-lhe: se for menina vai-se chamar Esperança, se for menino vai-se chamar João…
Mas Deus não lhe fez a vontade. Por isso, no dia de Natal, “mesmo de barriga à boca” (grávida), preparou a ceia. Acendeu a lareira e colocou junto dela dois potes de ferro. Dentro do mais pequeno cozeu o polvo, e dentro do maior cozeu o bacalhau, os tronchos de couve portuguesa, as batatas e os rábanos.
De seguida, amassou a farinha para as filhós e partiu o pão para as rabanadas. Filhós e rabanadas que, com o polvo, eram os acepipes principais da ceia de Natal, na casa dos lavradores, em Trás-os-Montes.
À tardinha, composta a mesa, a família sentou-se à sua volta e ceou. Depois, finda a refeição, cantaram todos ao Deus Menino as canções de Natal que passavam de geração em geração:
Já se ouvem os clarins,
Dos anjos e serafins,
Que Deus enviou à terra,
Cercados de paz e luz,
Para anunciarem ao mundo,
O nascimento do Seu Filho,
O Menino Jesus.
E junto à manjedoura,
Num estábulo em Belém,
Já se encontram pastorinhos,
E outra gente, também,
Em frente Dele,
E de Maria, sua mãe,
Cantando alegremente:
“Olá, meu Menino,
Como Tendes passado,
Só para Vos ver,
Deixei o meu gado.”
Isto prolongou-se até próximo da meia-noite, altura em que o sacristão tocou os sinos, ecoando na noite escura, para chamar a população da aldeia para a Missa do Galo.
E foi então que a Maria do Céu, o marido e os filhos se encaminharam para a igreja, para assistirem à Missa do Galo e beijarem o Menino Jesus, que o padre Francisco foi buscar ao Presépio para o dar a beijar aos presentes, que, em silêncio, o beijaram com tanta devoção como se fosse o Deus verdadeiro.
Findas as cerimónias religiosas regressaram a casa. A noite estava tão serena como a Maria do Céu a tinha imaginado, quando pediu a Deus que lhe desse o filho nessa noite de Natal.
O vento tinha amainado e a neve caía em silêncio nos telhados e nos campos, dando a impressão que os anjos tinham descido sobre eles e os tinham coberto com um imenso lençol branco, de linho, em homenagem ao nascimento de Jesus.
Na aldeia o silêncio era absoluto. Agora só de longe a longe se ouviam cantar os galos, porque eles sabem a música de cor. Pensava para si a Maria do Céu quando, já deitada, encostava a barriga ao marido para que ele sentisse o filho a dar-lhe um pontapé…
Filho que só viria a nascer três dias mais tarde, no dia 28, num sábado solarengo, para quem a Maria do Céu, cumprindo a promessa feita a Deus, pediu ao marido que lhe fosse dado o nome de João. O que veio a acontecer, quando o padre Francisco o baptizou a seguir, no domingo de Páscoa.
João que, nove anos depois, quando o professor mandou sair mais cedo os alunos para irem ajudar a fazer o Presépio, correu para casa e disse à mãe:
- Mãe, já começaram as férias do Natal! Dê-me de comer que quero ir buscar musgo para o levar à igreja, à minha madrinha, para fazermos o Presépio. Olhe que já faltam poucos dias para ser o Natal e para nascer o Menino Jesus…
A mãe, ao vê-lo com tanta ansiedade, disse-lhe:
- Então come alguma coisa antes de saíres, e agasalha-te bem porque está frio e podes constipar-te.
E respondeu-lhe ele, eufórico:
- Ó minha mãe, eu não tenho frio! A senhora não vê que o Menino Jesus está couracho (nu) no Presépio, junto de Nossa Senhora e de São José, e da vaca e da burrinha, e não tem frio?...
E diz-lhe a mãe:
- Isso é verdade, meu filho, mas tu não és o Menino Jesus…
- Pois não minha mãe, mas também não tenho frio…
O João saiu de casa a correr e foi procurar musgo ao tronco dos olmos, ao Ribeiro dos Inverniços, e levou-o à madrinha, que já se encontrava na igreja a ajudar o padre Francisco a fazer o presépio.
O João andava feliz e contente. Agora, apenas esperava que chegasse o dia e a noite de Natal. Primeiro, para comer as filhós, as rabanadas e o polvo. Segundo, para ir à Missa do Galo e beijar o Menino Jesus. E depois, quando chegasse a casa, ir-se deitar e ver entrar no seu quarto o Menino Jesus, quando lá fosse levar os rebuçados do céu. Mas este segredo nem à mãe o tinha revelado…
Nessa noite, depois da ceia e dos cânticos ao Deus Menino, o João foi com os pais à Missa do Galo e quando chegaram a casa foi para o quarto e deitou-se, mas não adormeceu logo…
O dia e a noite de Natal eram especiais para toda a gente. Porém, a noite tinha uma magia muito especial para as crianças, porque esperavam que o Menino Jesus fosse ao quarto deles levar os rebuçados do céu, por que isso era a prova de que não tinham mentido aos pais nem ao professor.
De manhã, quando acordavam, encontravam os rebuçados espalhados pelo chão e corriam para os pais, a dizer:
- Ó meus pais tomem lá um rebuçado do céu, que o Menino Jesus me deixou no meu quarto…
Os pais e os irmãos mais velhos, se os havia, não se desmanchavam e aceitavam o rebuçado, mantendo-se assim o segredo da tradição na aldeia.
Tradição essa, que passava de geração em geração até que os filhos descobriam que quem lá ia levar os rebuçados eram os pais e não o Menino Jesus. E, então, quando isso acontecia era uma desilusão enorme para eles. Primeiro, por que se sentiam enganados pelos pais. Segundo, por lhes roubarem esse sonho, tão lindo, de uma noite verem entrar o Menino Jesus no seu quarto, acabando assim a magia dos rebuçados do céu.
O João ainda acreditava nos rebuçados do céu. O pai, algum tempo depois de ele ter ido para o quarto, julgando que já dormia, pegou nos rebuçados que tinha comprado na vila, para serem diferentes dos que se vendiam na taberna da aldeia, e dirigiu-se ao quarto dele, com mil cuidados e abriu a porta e espalhou os rebuçados no chão. Mas quando já estava de saída, qual não foi o seu espanto quando vê o filho a saltar da cama e a dizer para ele:
- Então o pai é que é o Menino Jesus...
O pai, embaraçado, pediu-lhe desculpa e disse-lhe o mesmo que já tinha dito aos irmãos, em circunstâncias iguais:
- Desculpa, meu filho, por te ter enganado. De facto, quem tem cá vindo a deixar os rebuçados tenho sido eu, e não o Menino Jesus…
E para minimizar o choque do filho, quando o viu a chorar, acrescentou:
- Sabes, meu filho, o Menino Jesus não tem tempo para ir ao quarto de todas as crianças do mundo que se portam bem e não dizem mentiras. Pergunta aos teus irmãos se não foi também assim com eles… E olha que já o teu avô me fez a mim a mesma coisa…
O filho, triste, olhou para o pai mas não tocou nos rebuçados, correu para a mãe a chorar e disse-lhe:
- Mãe, o Pedro tinha razão quando me disse que eram os pais que deixavam os rebuçados no quarto dos filhos e que não era o Menino Jesus, mas eu não acreditei nele…
A mãe, abraçada a ele, deu-lhe um beijo e disse-lhe:
- Sabes, meu filho, todos os pais fazem isto aos filhos, até que eles descobrem, como tu, que não é o Menino Jesus que lhe traz os rebuçados. Mas deixa lá, não chores. Não é por isso que Ele não gosta de ti! Agora vai dormir e não penses mais nisso, o teu pai gosta de ti e não o fez por mal.
O João regressou ao quarto e adormeceu, mas o desgosto ficou com ele. A partir desse dia fez os trabalhos escolares, que o professor lhe tinha mandado fazer em casa, e no dia sete de Janeiro voltou para a escola, mas apareceu de semblante triste. Então o professor, ao vê-lo assim, perguntou-lhe:
- O que se passa contigo, João? Vens tão triste!... Não fizeste os trabalhos de casa, como te mandei, foi isso?
E ele respondeu-lhe:
- Não é por causa disso, senhor professor. Eu fiz os trabalhos todos, mas na noite de Natal quando estava no meu quarto à espera de ver entrar o Menino Jesus com os rebuçados do céu, quem lá foi pô-los foi o meu pai…
Dizia isto ao professor de olhos pregados no chão, prestes a chorar.
O professor conhecia a tradição e ficou embaraçado. Sem saber o que lhe dizer, pediu-lhe que lhe mostrasse os trabalhos de casa. Ele foi mostrar-lhos, e o professor passou os olhos por eles e deu-lhe um “B” grande e disse-lhe: parabéns João, estão muito bem!
Tu és bom aluno, vai-te sentar.
Ele viu escrito, a encarnado, o “B” grande no topo das páginas e foi-se sentar.
Os alunos mais velhos já sabiam que era assim que acontecia. Os mais novos, esses, continuaram a acreditar que era o Menino Jesus.
Definitivamente, para o João findou esse sonho, tão lindo, de uma noite de Natal ver entrar no seu quarto o Menino Jesus com os rebuçados do céu. Agora já sabia quem o fazia…
Apenas não sabia que, se um dia fosse pai, nas noites de Natal ia fazer aos filhos o mesmo que o pai lhe fez a ele, até que fosse apanhado com a boca na botija e um filho saltasse da cama a dizer: então, o Menino Jesus é o meu pai!…
Os anos foram passando. Em todos houve um dia e uma noite de Natal. A Maria do Céu teve mais quatro filhos, sete ao todo. Para ela, alguns dias de Natal foram alegres, outros foram tristes. Muito tristes! Longe eclodiram guerras e para uma delas foi enviado o seu filho João, onde viria a falecer no dia vinte e três de Dezembro.
No dia seguinte apareceu em casa um sargento do Exército a levar a notícia de que“ o soldado João Almeida tinha morrido numa emboscada, em Moçambique, e em nome do Exército apresentava condolências e informava que o seu corpo chegaria brevemente ao Continente, para ser entregue à família”.
Nesse ano, em casa da Maria do Céu já não houve ceia de Natal, nem se cantaram canções ao Deus Menino. E na mesa da cozinha ficou vazio o lugar que mais ninguém ocuparia.
A partir desse dia, em sua casa a harmonia e o sossego familiar alteraram-se, profundamente. Primeiro, com a morte do filho, na guerra do ultramar, depois, com a do marido, que não resistiu à morte do filho. E, finalmente, com a solidão.
Viúva, os desgostos da vida e os anos a pesarem levaram-lhe a felicidade e a paz de espírito, até ao fim dos seus dias. Embora os filhos, enquanto viveu, fossem todos os anos, com as famílias que constituíram, passar o Natal a casa dela.
Eles estiveram sempre ao seu lado, porque ela foi uma boa mãe. “Ai de quem toque nos meus filhos, nem que seja com uma flor”, dizia ela, quando se referia a eles.
João de Deus Rodrigues.
In: Livro “NEM SEMPRE OS PINHEIROS SÃO VERDES” – Poética Edições