Com castanhas e vinho já se anda caminho
Por: Barroso da Fonte
Tenho pelos provérbios um enorme respeito. Minha mãe que nunca conheceu uma letra, falava pelos cotovelos e, a cada conto, acrescentava um ponto. A falta da riqueza verbal em que a nossa Língua sempre foi fértil, remediava-se com os ditos populares que diziam muito em poucas palavras. O evolucionista Lamarck provou que a necessidade cria o órgão. É a lei do uso e do desuso.
Como estamos próximos do S. Martinho, tempo em que se prova o vinho, ocorre-me falar da castanha e do vinho. Dois produtos que a terra dá, mas nem todas as terras são suficientemente férteis para darem estes dois bens essenciais, em quantidade e qualidade. O clima e a altitude exercem grande influência na produção, sobretudo do vinho. E, na mesma região, há anos em que se produz muito e bom e outros anos em que se dá pouco e de fraca qualidade, quer a castanha que o vinho. Neste ano a falta de chuva no seu devido tempo, prejudicou, parcialmente, quer a castanha quer o vinho. Mas não foi dos piores. A castanha chegou mais tarde e é mais pequena e o vinho ainda beneficiou da chuva que chegou excessivamente tarde.
Apesar destas contingências e da falta de mão-de-obra, o calendário anual cumpre-se e pelo S. Martinho, come-se a castanha e bebe-se o vinho. É a tradição no seu esplendor. Às crises climatéricas a que o homem não pode opor-se, acrescem as da desertificação e da concorrência. Antes da adesão à União Europeia apenas se importavam alguns produtos agrícolas porque os nacionais, nalguns casos, não chegavam para abastecimento do todo nacional. Com a liberalização dos mercados, o país deixou de ter falta de qualquer bem comestível e, ao longo do ano, nunca faltam produtos sazonais. De verão e de inverno há sempre muita quantidade mas pouca qualidade. Regra geral nenhum tipo de fruta ou de tubérculos, se compara àquilo que se colhe em Portugal. O próprio vinho, chega muito bem apresentado, tal como a fruta. Mas o sabor de outros tempos foi chão que deu uvas. A entrada na UE matou a agricultura, desertificou o país e empobreceu o povo.
Com este introito pretendo dizer que estamos às portas do S. Martinho, época de primazia para a castanha e para o vinho «novo». Ninguém despreza a tradição e há que mantê-la para estímulo dos mais novos que devem ligar-se aos usos e costumes.
Com esta preocupação se ocupam alguns intelectuais oriundos da «Província», que nasceram entre ouriços e salgadeiras e não querem perder essa ligação umbilical aos campos, sejam castanheiros, marmeleiros, cerejeiras ou outra qualquer árvore, cuja imagem guardam desde a meninice.
Jorge Lage é um exemplo concreto dessa peregrinação país fora, visitando soutos, recolhendo receitas em que a castanha é rei, como a cereja em cima do bolo, ouvindo provérbios, lendas e maneiras de conservar, pelo ano adiante, castanhas cruas, assadas ou cozidas. Apaixonado pela memória dos seus tempos de criança, já no entardecer da sua caminhada, fixou os olhos no valor dessa árvore e desse fruto. Já editou quatro obras, que o catapultam para especialista nacional.
Neste livro fala do desprezo com que nasce, cresce e morre o castanheiro, em qualquer pedaço de terra, ao deus-dará, sem esterco, sem dono e sem os mimos da cebola, da alface ou do tomate. Ensina ao homem como deve resistir ao clima, ao sol, à chuva e ao gelo. Como cumpre o seu destino montanhês, aceitando a vizinhança dos fetos, das silvas ou das urzes. Não dá ouvidos à florestação, à falta de regadio ou às disputas da propriedade. Não toma partido pela individualidade ou pelo coletivismo. Tanto cresce ao ar livre, encostado aos marcos, como às paredes. Indiferente à vontade humana, floresce, dá folhas, dá fruto e dará madeira da melhor que há. Os seus frutos não têm dono. São de quem os apanhar e os comer. Sem pressas e sem destino marcado. Vê passar gerações, desafia incêndios e tempestades; abriga os pastores e os animais; dá lenha para aquecer os pobres e os ricos. Sem pressas, cumpre o seu destino, durante séculos, milénios, quase parecendo o rei da biodiversidade.
Jorge Lage, transmontano de antes quebrar que torcer, nasceu no verão de 1948, em Chelas que rima com Cabanelas, sua freguesia. Talvez, nesses difíceis tempos de criança, como eu e tantos, tenha dormido à sombra dum castanheiro, quando a mãe, levando-o ao colo, teve de ir ao monte levar o almoço ao pai, que não podia perder tempo nos caminhos. Intuiu, nesses possíveis percalços da sociedade embaraçada que o Castanheiro seria o símbolo da sua firmeza, independência e durabilidade. E, talvez por isso, tenha escrito nas primeiras páginas deste seu quarto livro, sobre Maria Castanha – Outras memórias:
«O que é difícil tem outro valor. Como trabalhador de valor mínimo e de vontade máxima, não me posso queixar, porque os meus pais, sábios agricultores transmontanos, sempre me ensinaram a viver feliz e a ser feliz com pouco. A classe nobre ou erudita, sempre quis pairar acima do grosso humilde da nossa população, mesmo que isso implicasse um atropelar ou até descaracterizar das raízes da língua materna. Eu sei – acrescenta Jorge Lage – que um ou outro técnico agrário ou docente do ensino superior gostaria de se intrometer neste trabalho de recolha etnográfica e de etnolinguística, reduzindo à medida da sua visão este manto cultural que o povo teceu ao longo de nove séculos. Obra que poderá um dia ser trabalhada e urdida por etnógrafos, filologistas ou dicionaristas sérios e doutos». Mais um grande livro a merecer o pódio no mercado livreiro.
Esta mais recente novidade literária sobre a castanha,vai ser apresentada no próximo dia 12, pelas 15 horas na Sede da Casa de Trás-os-Montes do Porto, Rua de Costa Ca bral, 1037.