De Barroso da Fonte
Quem, como eu, pertenceu à geração dos capitães de Abril e não esteve na Guiné, esperou 42 anos para saber como se processou, aí, o movimento descolonizador. Finalmente um desses capitães deixou passar a ventania ensurdecedora. E, quando o vento abrandou e o bom senso prevaleceu, eis que surpreende pela lisura, clareza e precisão.
Jorge Golias, nascido em Mirandela, em 1941, habilitado com o curso da Academia da Arma de Transmissões, chegava ao aeroporto de Bissalanca, no dia 1-7-1972. A guerra do Ultramar começara em Março de 1961, em Angola. Depressa alastrou à Guiné e a Moçambique. Durante os cerca de 13 anos em que essa guerra se desenvolveu, foram muitos e irrecuperáveis os encargos, os protagonistas e até as reservas morais da Nação: pessoas, bens e valores históricos.
Ao cabo de 13 anos, a alma Portuguesa estava ferida de morte. E foi na Guiné que surgiram os primeiros sinais da rebelião e do inconformismo, a partir dos oficiais do quadro permanente. A causa próxima para despoletar essa rebelião foi o Decreto-Lei 353/73, do então ministro da Defesa, Sá Viana Rebelo que permitia a continuidade dos oficiais milicianos nas fileiras do exército, face à escassez do QP. O rastilho teve como consequência o golpe militar do 25 de Abril.
Nos 42 anos que entretanto decorreram publicaram-se muitas centenas de livros, fizeram-se muitas dezenas de filmes e promoveram-se milhares de entrevistas, debates, colóquios, seminários e até se deram aulas suplementares nas escolas públicas na tentativa de explicar essa viragem. Quase sempre a partir dos profissionais das armas que deixaram de ser precisos nos quartéis e se aposentaram, distribuindo-se pelas mais diversas actividades liberais.
Cada mais um livro que foi saindo do prelo era mais uma versão pessoal a pretender ofuscar e a sobrepor-se às anteriores. Esperava-se que depois do tufão surgisse uma obra temática que fosse mais explicativa, mais do interesse grupal do que do singular, mais de todos do que, apenas, do seu autor.
Essa obra chegou, agora, pela celebração dos 42 anos do golpe que pretendeu acabar com a guerra e com o regime político. Como testemunha viva e activa desse processo militar e político, fui dando eco do aventureirismo que foi transversal à sociedade portuguesa. Entre o extremismo de uma minoria militar de esquerda e, em menor número, da tendência contrária, prevaleceu o bom senso. Foram muitos aqueles que marginalizaram os oficiais milicianos que, competentemente, exerceram funções de comando, por escassez do Quadro Permanente. Foi por causa disso que, em 1982, ouvindo uma afronta, ao líder desse grupo, contra os milicianos, nasceu a ideia de construir o Monumento Nacional aos Combatentes que tombaram ao serviço da Pátria. Essa ideia foi assumida por oito associações que constam no sopé desse monumento, inaugurado junto ao Forte do Bom Sucesso, em 15/01/1994. Talvez nunca se tenha revelado esta verdade. Mas antes que leve este segredo para a cova, aqui o declaro, como aplauso ao livro que o Cor. Jorge Golias, me acaba de enviar com generosa dedicatória. Na última aba deste seu livro escreveu que «a descolonização da Guiné-Bissau tinha tudo para correr mal». E enuncia quatro itens:
«-os militares na Guiné, de todas as patentes, clamavam pelo «regresso imediato a Portugal»;
-o povo português em Lisboa gritava: «nem mais um soldado para o Ultramar»;
- o PAIGC, muitas vezes, não se entendia e dava ordens contraditórias e provocatórias;
- Spínola opunha-se ao reconhecimento e defendia um referendo de continuidade numa comunidade lusíada.»
Jorge Golias conclui que «a descolonização surge assim como uma síntese dos seus contrários, promovida pelo MFA na Guiné e pelo governador e comandante-chefe, com o apoio do MFA em Portugal».
Estas quase 400 páginas constituem uma espécie de ata de todo o processo revolucionário que Jorge Golias trata na p.61 como «primórdios da criação do movimento de capitães».
Na p. 59, em subtítulo, fala da sua outra guerra. E começa por explicar as razões pelas quais gastou «tantas descrições, técnicas, emotivas, divertidas e pouco compatíveis com uma narrativa político-militar?»
De imediato responde: «por um lado assim se perceberá melhor que a minha missão, ligada da NT, foi a minha primeira preocupação; por outro lado é sempre possível ver um lado positivo, dar alguma cor à narrativa e iluminá-la com umas pinceladas de bom humor».
Em Junho de 1973 decorreu no Porto o Congresso dos Combatentes do Ultramar que os profissionais das Forças Armadas em serviço na Guiné, interpretaram como iniciativa dos antigos oficiais milicianos mas que enfureceu alguns oficiais da linha Spínolista. Em 12 de Agosto seguinte, esses e outros descontentes conheceram a lei que abria as portas aos milicianos. Cerca de 20 oficiais analisaram no Clube de Bissau esse documento. Os assuntos abordados tinham a ver com aquela lei que lhes retirava a exclusividade de direitos. Nas pp 98/99 deste livro JG é explícito: «Participei na reunião, notando que os oficiais engenheiros não eram abrangidos pela medida punitiva do decreto. E foi essa condição que invoquei para dizer que o DL não nos lesava, mas que estava solidário com os meus camaradas de armas». Apelou a esse grupo de 20 oficiais lesados para «reunirem com mais recato e também para discutirem outros assuntos de interesse comum, como a situação da guerra no território. Aceite a proposta, marcámos nova reunião para a semana seguinte, dia 17 de Agosto, na Sala de Sargentos».
O autor esclarece que Otelo apareceu nessa reunião «com uma carta escrita num tom muito duro e inusual, dirigida a políticos e militares». Acerca do teor dessa carta começaram as intervenções e sobretudo os camaradas mais velhos, quiseram aligeirar o texto. Como esta terá sido a reunião mais mais decisiva do movimento dos Capitães e, até ao momento ninguém tinha esclarecido, com este rigor, os contributos positivos desse movimento, é gratificante ler, 42 anos depois, o testemunho na primeira pessoa deste Coronel Transmontano que, pessoalmente, apenas conheci em 25 de Março de 2015, mas perante quem me vergo, não obstante ser mais velho na idade e no dever cívico que cumpri na ZIN, em Angola como oficial miliciano Ranger.
É que ele assistiu, quase na condição de relator desta e de muitas outras reuniões desse movimento Histórico; nunca dele li qualquer reivindicação de vanglória ou exibicionismo; Mas leio-o, agora, a afirmar: «Intervim para dizer que estávamos ali a discutir, há horas, o texto e limando arestas, de tal maneira que a carta era, agora, quase uma carta de amor, quando devíamos ter discutido também a guerra em que estávamos envolvidos, e que só se podia resolver com um fim de regime através de uma revolução armada»... A reunião acabou ali, afirma Jorge Golias. Otelo disse «temos homem», mas criticou-me, dando a entender que tinha espantado a caça! Respondi que não, que apenas tinha separado o trigo do joio. Ora
esta é a primeira vez que, no seio do movimento de capitães, se falou em revolução». Adianta que «Otelo apareceu na reunião de 28 de Agosto seguinte, na mesma sala, com a versão final dessa carta que foi aprovada e assinada por cerca de 40 oficiais do QP, vindos de todo o território».
Em nota do rodapé (89) dessa página, esclarece que, mais tarde, numa reunião em Lisboa, Otelo invocou essa reunião, de 17/8/1973, perante o jornalista Adelino Gomes, como sendo o mais emocionante período de preparação do 25 de Abril».
Este livro do Cor. Jorge Golias, vem corrigir, aclarar e desmistificar muitas inverdades. Não cabe numa breve recensão de jornal regional ou mesmo de alguns blogues, dizer muito mais. Jorge Golias não é historiador, nem veste essa roupagem. Apenas presenciou, viu, ouviu, procurando, à distância de quase meio século, dar contributos para que, quando a História da Descolonização da Guiné-Bissau, for reescrita por profissionais isentos e rigorosos, se saiba quem fez o quê e com com que intenções.
Pessoalmente fiquei esclarecido. E até orgulhoso por ter a certeza de que este militar Transmontano não se calou em momentos decisivos da História da libertação dos países Luso-africanos.
Nota Final
Este livro vale também por nele encontrar e reencontrar «gente-nossa». Menciona o furriel Miliciano de Mondim de Basto, Luís Jales de Oliveira (64/ 66), publicando o «Beijo Negro», um poema prosaico que, com muitos outros, fazem dele um escritor de referência nacional. Cita também o soldado radio-telegrafista António Carmo, que pintou em 1973, as messes de oficiais e sargentos e, mais tarde, a tela da Arma de Transmissões, à qual estava adstrito. Essas cores tropicais, quentes e tipicamente africanas,conferem à sua obra pictórica uma conjugação harmoniosa que entre 24/5 e 17/7/2016 vão animar a galeria de Arte da Sociedade Martins Sarmento, em Guimarães.
Curiosamente no dia em que chegou este best - seller, assinei no suplemento Cultura do Diário do Minho, uma recensão das Cartas de amor de Amílcar Cabral para Maria Helena Ataíde Vilhena Rodrigues, sua mulher e sua condiscípula na Instituto de Agronomia em Lisboa. Na p. 93, em pé de página refere a biografia deste líder Guineense que chegou a estagiar em Mirandela. Ela nasceu em Casas Novas, neta e filha de oficiais do Exército Português, nascidos em Sapelos-Boticas. Têm duas filhas: Iva Maria e Ana Luísa, ligadas à nossa Província. Estes pormenores devem devem ser transmitidos às futuras gerações, tal como o faz Jorge Golias neste livro, ao qual faço a minha continência.